"À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo"

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Vale a pena querer ser protagonista na história dos outros?

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Quando, no primeiro ano da faculdade, meu professor de Língua Portuguesa José Marinho – um dos melhores professores que já tive – leu o “Se Te Queres Matar” do Álvaro de Campos, dois trechos me chamaram atenção e, até hoje, ficam rodopiando na minha cabeça de tempos em tempos. São eles:

Trecho 1

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém…
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te…
Talvez peses mais durando, que deixando de durar…

Trecho 2

Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste;
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

Na minha opinião, mais do que modesta, Campos acerta em cheio. Temos uma incrível necessidade de sermos protagonistas na história de vida dos outros (todos os outros!) e, mais que isso, de achar que seremos pessoas insubstituíveis e inolvidáveis. É claro que no poema o autor extrapola o argumento e se utiliza da idéia da morte e de uma pesada insignificância do ser humano para sustentar tal arugmento; porém, acho que dá pra traçar um paralelo com o dia a dia de “gente viva”.

Às vezes pessoas se mudam pra outras cidades e ficamos desesperados com a perspectiva de que, com o tempo, elas poderão nos esquecer; ou mesmo quando você se forma no colégio e teme pelo futuro daquelas amizades incríveis que você construiu. Bem, realmente poderão nos esquecer e as amizades poderão se findar, mas o que se há de fazer? Você fez a sua parte marcando a vida destas pessoas, não? Então, vida que segue.

Não estou aqui dizendo que é inútil tentar fazer a diferença na vida daqueles que você gosta, que você ama – muito pelo contrário: eu acho imprescindível! Mas aqui faço a ressalva que me motivou a escrever esse texto-sem-nexo-da-segunda-feira: deve-se fazer notar o seu apreço, o seu carinho por aqueles que você ama sempre que possível e, claro, desde que seja espontâneo. Mas, talvez, devamos tratar este tema com um pouco mais de leveza, afinal, é uma relação que envolve terceiros – e não temos como controlar como eles vão agir (alguns dirão infelizmente, rs).

Porém, não desista de marcar a vida daqueles que você gosta. Além da sensação incrível que isso causará em você, certamente a quantidade de pessoas que te lembrarão com carinho, ainda que esporadicamente, é bem maior do que as que te jogarão no balaio do esquecimento.

E as que te jogam no balaio do esquecimento, bem, talvez não merecessem de verdade a tua atenção.

Abs

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Se te queres matar

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Se te queres matar, por que não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria…
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por atores de convenções e poses determinadas,
O circo policromo do nosso dinamismo sem fím?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente…
Talvez, acabando, comeces…
E, de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!
Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém…
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te…
Talvez peses mais durando, que deixando de durar…

A mágoa dos outros?… Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão…
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é coisa depois da qual nada acontece aos outros…

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada…
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas…
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além…
Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido…
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia…

Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste.
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos…
Se queres matar-te, mata-te…
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência! …
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?

Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?

Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem.
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?

És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjetividade objetiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?

Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente,
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células noturnamente conscientes
Pela noturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atômica das coisas,
Pelas paredes turbihonantes
Do vácuo dinâmico do mundo…

Álvaro de Campos

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