Alê Flávio

"À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo"

Retalhos

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Tem um tempo que eu venho refletindo muito sobre, bem, sobre tudo. E não, não é uma figura de linguagem. E eu não sei se cheguei a algum lugar (nem se é possível chegar em algum lugar), mas eu precisava fazer algo com tudo isso – nem que fosse um post desconexo no meu blog.

Acredito que dentro da nossa cabeça exista um “Eu Ideal“. Esse Eu é uma espécie de junção de experiências e de características que a gente vê por aí e entende que são boas pra nós. Conforme a gente vai criando esse Eu, naturalmente, começa a tentar buscá-lo. Só que a vida real é ligeiramente avessa a idealismos e, mais do que frequentemente, a gente vai ficando longe dele.

E é aí que o bicho pega.

Pega porque a gente tem que tomar decisões que enderecem problemas da vida real, não da ideal. E por mais que isso faça perfeito sentido, pra nossa alma sonhadora é uma espécie de traição; é como se você arrancasse um retalho da enorme colcha que são nossos sonhos e vontades. Em geral, no calor do momento, isso passa batido… mas volta, sempre volta. Um dia você está deitado na sua cama, tarde da noite, esperando o sono bater mas o que bate mesmo é a lembrança daquele seu Eu que queria ser alguma coisa bem diferente do que você, de fato, é hoje. E, roubando do Camus, é aí que os cenários desabam.

Isso não seria um problema se a gente fosse melhor em aceitar que as coisas mudam, ou que a vida pede decisões diferentes das que a gente gostaria de tomar. Quando a fazemos terapia é meio que isso que, 50 minutos por sessão, buscamos desvendar, organizar, entender e, finalmente, aceitar. No entanto, tomando a mim como exemplo, parece-me que temos um mecanismo de tentar costurar esse retalho de volta – mas a gente esquece que o buraco deixado pelo retalho rasgado outrora aumenta dia após dia e que um remendo não resolve.

É quando a gente se olha no espelho e vê… buracos. O músico, o atleta, o escritor, o menino, todos eles deram lugar a alguma outra coisa (ou só deixaram espaços abertos mesmo). São muitos retalhos pra colocar de volta e, sendo honesto, não sei se tem muito como. Como dizem, “o trem já saiu da estação”. E é aqui que talvez seja o erro crasso dessa coisa toda (e eu sigo tentando entender, não ache que eu sei qualquer resposta).

A solução desse problemão todo não é remendar rasgos, mas começar uma colcha nova que leve em consideração que a vida é uma coisa em constante movimento que só obedece às suas próprias leis e meio que, perdoem o meu Francês, caga um balde pro que a gente acha. Essa colcha, inclusive, não possuirá todos os retalhos que você gostaria que ela possuísse, nem as cores que você mais gosta, afinal, ela começa a ser preenchida com os pedacinhos de pano e linha que você tem hoje – e não os que você tinha quando sua maior preocupação era uma espinha na ponta do nariz.

Mas não, não é fácil. De novo: a gente parece ter um mecanismo que, de alguma maneira, faz a gente acreditar que querer começar a tricotar de novo é errado e, pior, não vale a pena. Que “it is what it is” e que devemos nos contentar com o que a gente tem, já que é o resultado de escolhas e decisões feitas por, veja bem, nós mesmos. Assim, vamos ficando cada vez mais frustrados e absortos em devaneios do que poderia ter sido e não fui.

Eu tou nesse lugar tem anos e é pesado. Fica mais pesado ainda quando, por um capricho dos deuses, a gente é capaz de enxergar as letrinhas por trás da Matrix (salve, Cris Dias). Portanto, escrevo essas palavras como uma tentativa de dizer pra mim mesmo que é possível um caminho diferente, desde que eu não queira voltar o tempo, o que normalmente é meu primeiro impulso. Eu sou um Alê fundamentalmente diferente do Alê sonhador de 20 e tantos anos atrás (ainda bem) e, embora compartilhe de muitos dos mesmos sonhos, tenho uma vida estabelecida, com responsabilidades, funções e restrições que precisam ser levados em conta.

A pergunta que fica no fim disso tudo é: “o que eu quero fazer com meus panos e minhas linhas“?

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2023 razões

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Faz um tempo exagerado que eu num apareço por aqui e isso se dá por 2023 razões, pelo menos. Sim, 2023 foi um ano… bem, foi um ano.

Eu gostaria de terminar esse ano fazendo o que, um dia, eu fiz de melhor – escrever o que eu penso, sinto e espero, sobretudo pro ano que chega. No entanto, eu honestamente acho que dessa vez não vai ser possível.

Quem me conhece de perto sabe que eu preciso do que eu chamo de chacoalhões para conseguir fazer com que as coisas andem, isso em qualquer aspecto da vida – e não faltaram nesse ano do Senhor; eu ainda não sei se as coisas estão andando, mas certamente elas não estão paradas.

A vida tem um jeito muito particular de nos mostrar as coisas, de nos entregar questões e esperar pra ver como vamos endereçá-las. Eu, confesso, nunca fui muito bom nisso, até porque quando se trata de mim eu sempre me esqueço. Como diz aquele ditado, ou frase, que vemos em um filme ou outro, “meu coração está no lugar certo” – mas isso nem sempre é o suficiente. E eu sei.

Esse ano, como nunca antes na história desse que vos escreve, basicamente todos os aspectos da minha vida meio que passaram por um liquidificador e, confesso, foi extremamente assustador – talvez porque eu me olhei no espelho por mais vezes do que eu gostaria.

Não estou dizendo, no entanto, que não houve coisas boas, conquistas ou esperança – claro que houve! Mas o fato é que eu me vi olhando mais vezes pro abismo do que pro espelho e quase torcendo pra que ele olhasse de volta pra mim, além de me dar ideias do que fazer pra andar pra frente sem cair nele. Esse abismo chamado 2023 me colocou contra a parede muitas, muitas vezes… e eu confesso que saí dela poucas. Mas acho que estou começando a entender essa dinâmica.

Em 2024 não espero um completo 360º, até porque não é assim que a vida funciona, mas eu preciso procurar aqui dentro o Alê que um dia existiu. Eu sinceramente nem sei com o que, de fato, ele se parece; ele sempre foi um coletivo de vontades, desejos, sonhos e apostas meio incoerentes e incompletas. Mas eu acho que eu sei o que eu gostaria que ele fosse, então acho que tenho um ponto de partida.

A todos que lêem essas palavras, gostaria de agradecer, primeiramente, por estarem lendo até aqui, mas também pela companhia, conselhos e ouvidos – tenho certeza que alguma dessas coisas vocês fizeram por mim. Gostaria, também, de pedir desculpas pelo meus momentos de grosseria, chatice, intransigência e por decepcionar vez ou outra. Garanto, do fundo do meu coração, que nunca foi minha intenção.

E à minha filha, Bárbara, que um dia espero ler as bobagens que eu escrevo: você é tudo e um pouco mais pra mim. Obrigado por dizer que me ama toda vez que você sente vontade e por sorrir toda vez que me vê. Papai ama muito você, Babi.

Que venham novos ventos.

Obrigado e até ano que vem, amigos.

Shadows on the road behind
Shadows on the road ahead
Nothing can stop you now” – Ghost Rider, Rush

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Se te queres matar, porque não te queres matar?

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Se te queres matar, porque não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria…
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por actores de convenções e poses determinadas,
O circo policromo do nosso dinamismo sem fim?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente…
Talvez, acabando, comeces…
E de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém…
Sem ti correrá tudo sem ti.Talvez seja pior para outros existires que matares-te…
Talvez peses mais durando, que deixando de durar…

A mágoa dos outros?… Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão…
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é a coisa depois da qual nada acontece aos outros…

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada…
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas…
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além…

Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido…
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia…

Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste;
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos…
Se queres matar-te, mata-te…
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!…
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?

Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?
Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?

Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem,
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?

És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjectividade objectiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?

Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente:
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células nocturnamente conscientes
Pela nocturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atómica das coisas,
Pelas paredes turbilhonantes
Do vácuo dinâmico do mundo…

26-4-1926
Poesias de Álvaro de Campos

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